terça-feira, 16 de abril de 2019

Força estranha


        Esta é a história mais triste que já ouvi contar e aconteceu em uma região do interior do estado do Rio Grande do Sul em 2005. Sou filho de peão. Na época também era adolescente e fiquei muito emocionado com o que me contaram.
         Dois irmãos, criados na Estância vizinha, tomaram rumos diferentes na vida. Um se formou doutor e foi morar na capital, o outro continuou morando e trabalhando na mesma Estância. Ambos casaram e tiveram filho homem.
          Os primos raramente se visitavam, até que um dia o pai de Marcelo “vulgo Celo” resolveu que era hora do rapaz conhecer as raízes da família e passar as férias com seu primo no interior. Ele guardava a rudez do homem do campo e era extremamente enérgico com o guri. Antes das aulas terminarem chamou o filho e deu à fatídica noticia.
        – Tu estás completando 14 anos e é hora de conhecer o mundo real. Passas muito tempo na frente do computador sem fazer o que é saudável.
        – Tipo assim, viver três meses longe da Internet?
        – É essa a ideia. E para te animar vou comprar um bom cavalo no aras e mandar para Estância, aprenderás a montar e as lidas do campo.
         – Me deleta pai. Se eu desligar meu modem estarei fora do mundo. E meus amigos?
         – Tá na hora de conquistar novos amigos que vivem num mundo diferente do teu.
             De nada adiantou a choradeira. As férias começaram e Celo e o cavalo foram levados para casa do primo. Ao chegar o pai disse para seu irmão:
          – Irei deixar o Marcelo em tuas mãos e quero vê-lo transformado num peão quando vier buscá-lo. E Tu guri, cuida desse cavalo que a partir de hoje é tua responsabilidade. Quando eu voltar quero encontrá-lo escovado e limpo, bem tratado como estou deixando. Ai de ti piá se não tomares conta direitinho do animal!
              Quando Volnei viu o primo ficou deveras preocupado. Vestido com camiseta de Tchê Guevara, calça estilo to cagado e meio quilo de gel na cabeça, parecia qualquer coisa, menos peão de Estância. Era um legítimo representante dos guris de apartamento, aqueles que só leem Harry Potter e falam uma mistureba que ninguém entende.
            – E aí primo! Pronto para aprender a vida na roça? Não vá arregar e colocar o nome da família na lama.
            – Sei tudo sobre fazendas. Colho arroz, batatas, feijão, e costumo ordenhar as vacas todos os dias.
             – Alas puxa tchê! Tu colhes arroz no apartamento? Tiras leite das vacas na cidade?
             – É agricultura virtual, no Face.
             – Tu tá me parecendo baloqueiro. Como tu faz pra tomar leite virtual?
              – É virtual cara, não da pra beber. É só um jogo!
              – Hummm! Entendi. Espero que não vá te atacar das bichas quando enfrentar a vida real!
              – Tipo, tá que é assim? O que acontece?
               –Tu fala esquisito! Acontece que meu pai fará o relatório do teu comportamento para o teu pai.
              – Helôo!!! Come on!!! Meu velho é durão, preciso tirar de letra. O pior é meu Fgts que ficou na cidade.
              – O que é isso! Estou mais perdido que cusco em tiroteio com esse teu jeito de falar.
              – Fgts é Foda Garantida Toda Semana, uma gatinha que tenho.
              – Mas tu já andas fazendo isso com as gurias? E se tu emprenha uma delas?
               – Normal. Ela me disse que levou um papo sutiã com a mãe dela. A velha ensinou os truques pra não ficar grávida.
                As semanas foram passando e Celo se dedicava a aprender tudo o que um peão precisa saber, pois sabia que seu pai iria cobrá-lo. Volnei ficava lagarteando enquanto o primo se esgualepava. Com o tempo o rapaz aprendeu a montar e cuidar do cavalo. Chegou ao ponto de só em mostrar os arreios, o cavalo vinha em sua direção para ser encilhado. Entre Marcelo e Volnei também nasceu uma grande amizade. Quando faltavam poucos dias para o término das férias, enquanto recolhiam o gado da invernada, Celo saiu em disparada na direção da canhada atrás de um garrote que se desprendeu da manada.
                Galopando forte para não perder o bezerro de vista, ele não se deu conta que seu cavalo não era acostumado a se embrenhar por terrenos acidentados. Após entrarem no brejal o cavalo perdeu o passo e se projetou de cabeça numa vala erodida pelas águas das chuvas. O guri se esborrachou de cara no chão. O cavalo quebrou o pescoço e ficou deitado de costas dentro da vala gemendo olhando para Celo que aos prantos tentava ajudar seu amigo.  Nada pode ser feito. Alguns minutos depois o companheiro do peão estava morto. O guri chorava desesperado e todo ensanguentado saiu em busca de socorro.
                Estranhando a demora do primo, Volnei saiu ao seu encalço. Cerca de meia hora mais tarde encontrou-o na capa da gaita, tal a exaustão e as machucaduras do guri. O desespero de Celo não era sobre a sua responsabilidade para com seu cavalo que seria cobrada, mas por sua responsabilidade com o amigo que havia perdido.
               Uma semana depois seu pai chegou para buscá-lo. Encontrou montado no lombo de um cavalo um peão vestindo bombacha, guaica, botas e chapéu de aba larga. Era Marcelo quase irreconhecível.
              Seu tio fez o relatório ao irmão:
            – Deixaste aqui um guri e estás levando para casa um homem. Um homem de estância, um peão. Um peão que chorou por perder seu cavalo. Um peão que carrega no sangue a força estranha que nossas raízes e o ser gaúcho mantêm vivas dentro de nós.

                                              Rudimar Hauenstein

    

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