Esta é
a história mais triste que já ouvi contar e aconteceu em uma região do interior
do estado do Rio Grande do Sul em 2005. Sou filho de peão. Na época também era
adolescente e fiquei muito emocionado com o que me contaram.
Dois irmãos, criados na Estância vizinha,
tomaram rumos diferentes na vida. Um se formou doutor e foi morar na capital, o
outro continuou morando e trabalhando na mesma Estância. Ambos casaram e
tiveram filho homem.
Os primos raramente se visitavam, até
que um dia o pai de Marcelo “vulgo Celo” resolveu que era hora do rapaz
conhecer as raízes da família e passar as férias com seu primo no interior. Ele
guardava a rudez do homem do campo e era extremamente enérgico com o guri.
Antes das aulas terminarem chamou o filho e deu à fatídica noticia.
– Tu estás completando 14 anos e é hora
de conhecer o mundo real. Passas muito tempo na frente do computador sem fazer
o que é saudável.
– Tipo assim, viver três meses longe da
Internet?
– É essa a ideia. E para te animar vou
comprar um bom cavalo no aras e mandar para Estância, aprenderás a montar e as
lidas do campo.
– Me deleta pai. Se eu desligar meu modem
estarei fora do mundo. E meus amigos?
– Tá na hora de conquistar novos
amigos que vivem num mundo diferente do teu.
De nada adiantou a choradeira. As
férias começaram e Celo e o cavalo foram levados para casa do primo. Ao chegar
o pai disse para seu irmão:
– Irei deixar o Marcelo em tuas mãos e quero vê-lo
transformado num peão quando vier buscá-lo. E Tu guri, cuida desse cavalo que a
partir de hoje é tua responsabilidade. Quando eu voltar quero encontrá-lo
escovado e limpo, bem tratado como estou deixando. Ai de ti piá se não tomares
conta direitinho do animal!
Quando Volnei viu o primo ficou
deveras preocupado. Vestido com camiseta de Tchê Guevara, calça estilo to cagado
e meio quilo de gel na cabeça, parecia qualquer coisa, menos peão de Estância.
Era um legítimo representante dos guris de apartamento, aqueles que só leem
Harry Potter e falam uma mistureba que ninguém entende.
– E aí
primo! Pronto para aprender a vida na roça? Não vá arregar e colocar o nome da
família na lama.
– Sei tudo sobre fazendas. Colho
arroz, batatas, feijão, e costumo ordenhar as vacas todos os dias.
– Alas puxa tchê! Tu colhes arroz no
apartamento? Tiras leite das vacas na cidade?
– É agricultura virtual, no Face.
– Tu tá me parecendo baloqueiro. Como tu faz
pra tomar leite virtual?
– É virtual cara, não da pra beber. É só um
jogo!
– Hummm! Entendi. Espero que não
vá te atacar das bichas quando enfrentar a vida real!
– Tipo, tá que é assim? O que
acontece?
–Tu fala esquisito! Acontece que meu pai fará
o relatório do teu comportamento para o teu pai.
– Helôo!!! Come on!!! Meu velho é
durão, preciso tirar de letra. O pior é meu Fgts que ficou na cidade.
– O que é isso! Estou mais
perdido que cusco em tiroteio com esse teu jeito de falar.
– Fgts é Foda Garantida Toda Semana, uma
gatinha que tenho.
– Mas tu já andas fazendo isso
com as gurias? E se tu emprenha uma delas?
– Normal. Ela me disse que levou
um papo sutiã com a mãe dela. A velha ensinou os truques pra não ficar grávida.
As semanas foram passando e Celo
se dedicava a aprender tudo o que um peão precisa saber, pois sabia que seu pai
iria cobrá-lo. Volnei ficava lagarteando enquanto o primo se
esgualepava. Com o tempo o rapaz aprendeu a montar e cuidar do cavalo. Chegou
ao ponto de só em mostrar os arreios, o cavalo vinha em sua direção para ser encilhado.
Entre Marcelo e Volnei também nasceu uma grande amizade. Quando faltavam poucos
dias para o término das férias, enquanto recolhiam o gado da invernada, Celo
saiu em disparada na direção da canhada atrás de um garrote que se desprendeu
da manada.
Galopando forte para não perder o
bezerro de vista, ele não se deu conta que seu cavalo não era acostumado a se
embrenhar por terrenos acidentados. Após entrarem no brejal o cavalo perdeu o
passo e se projetou de cabeça numa vala erodida pelas águas das chuvas. O guri
se esborrachou de cara no chão. O cavalo quebrou o pescoço e ficou deitado de
costas dentro da vala gemendo olhando para Celo que aos prantos tentava ajudar
seu amigo. Nada pode ser feito. Alguns
minutos depois o companheiro do peão estava morto. O guri chorava desesperado e
todo ensanguentado saiu em busca de socorro.
Estranhando a demora do primo, Volnei
saiu ao seu encalço. Cerca de meia hora mais tarde encontrou-o na capa da
gaita, tal a exaustão e as machucaduras do guri. O desespero de Celo não era
sobre a sua responsabilidade para com seu cavalo que seria cobrada, mas por sua
responsabilidade com o amigo que havia perdido.
Uma semana depois seu pai chegou para
buscá-lo. Encontrou montado no lombo de um cavalo um peão vestindo bombacha,
guaica, botas e chapéu de aba larga. Era Marcelo quase irreconhecível.
Seu tio fez o relatório ao irmão:
– Deixaste aqui um guri e estás
levando para casa um homem. Um homem de estância, um peão. Um peão que chorou
por perder seu cavalo. Um peão que carrega no sangue a força estranha que
nossas raízes e o ser gaúcho mantêm vivas dentro de nós.
Rudimar Hauenstein
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